“A inteligência artificial na defesa no século XIV foi a pólvora”, disse José Neves, traçando um paralelo histórico que ilustra bem o ponto de viragem em que nos encontramos. Na visão da GMV — empresa espanhola com forte presença em Portugal — o setor da defesa está a atravessar uma transformação acelerada, onde a tecnologia deixa de ser apenas um facilitador e se torna o coração operacional de qualquer força armada moderna.
Se antes se podiam utilizar aeronaves com décadas de vida útil, como o B-52 norte-americano, hoje isso é impensável. A guerra da Ucrânia — que José Neves considera um “acelerador de realidades” — deixou claro que o futuro passa por capacidades autónomas, ciberdefesa e integração entre os cinco domínios operacionais: terra, mar, ar, espaço e ciberespaço.
A GMV tem desenvolvido soluções em áreas como inteligência artificial aplicada à aterragem autónoma de drones em cenários hostis, ou à análise de imagens satélite com algoritmos capazes de distinguir entre um navio e uma onda. Tudo com o objetivo de aumentar a precisão, reduzir o tempo de resposta e, em última instância, salvar vidas.
A empresa participa ainda em projetos europeus que visam garantir resiliência contra o jamming de GPS — uma realidade permanente na guerra da Ucrânia — e aposta fortemente em soluções para navegação, comando e controlo. “Hoje, a interoperabilidade entre sistemas é uma prioridade absoluta”, afirmou.
Mas há uma crítica velada (e por vezes explícita) à forma como os países europeus continuam a abordar o setor da defesa: “A decisão está nas capitais, não está em Bruxelas.” E é aqui que se encontra o verdadeiro bloqueio: os processos de aquisição são lentos, burocráticos, incompatíveis com a velocidade a que evoluem as tecnologias emergentes.
Europa: um gigante civil, um anão militar?
Para José Neves, o problema é de natureza estrutural. A Europa abdicou, voluntariamente, do investimento sério na componente militar, delegando na NATO — e, portanto, nos Estados Unidos — a responsabilidade de garantir a sua segurança.
Os 800 mil milhões de euros previstos para a defesa europeia representam uma oportunidade de ouro — mas também uma armadilha. Se os fundos forem distribuídos sem visão estratégica e sem diálogo entre governos, forças armadas e indústria, de pouco valerão.
A GMV, nesse contexto, posiciona-se como um exemplo do que pode (e deve) ser feito: trabalhar lado a lado com as forças armadas, compreender as necessidades operacionais e responder com soluções concretas, já testadas. “Portugal está atrasado, mas está a acordar”, garantiu Neves, destacando a colaboração ativa com a Marinha, o Exército, a Força Aérea e entidades como a ANI.
Uma das ideias mais fortes da conversa foi a necessidade de criar “integradores finais” em Portugal — empresas capazes de assumir responsabilidades sistémicas, liderar cadeias de valor e integrar as PME nacionais nos projetos de defesa europeus. “Não vamos desenvolver um tanque completo, mas podemos fornecer o sistema de navegação ou de comando e controlo para esse tanque”, exemplificou.
Esta abordagem não só fortalece a soberania tecnológica do país como cria empregos qualificados e consolida um ecossistema de inovação em áreas críticas como aeroespacial, cibersegurança, eletrónica e data science.
José Neves deixou ainda uma nota de otimismo pragmático: “Acredito que este atraso é recuperável.” Portugal, disse, já deu sinais de mudança. Há um novo paradigma de diálogo com as forças armadas e uma vontade política que começa a alinhar-se com a realidade geoestratégica.
Resta saber se esta vontade se transforma em ação concreta. Porque, como recordou o Diretor da GMV, “na defesa, três anos de atraso significam uma geração tecnológica perdida”.
Para a Europa — e para Portugal — o tempo da contemplação acabou. A próxima década definirá se conseguimos construir uma defesa autónoma, tecnologicamente soberana e alinhada com os desafios globais. E a tecnologia, ao contrário da política, já está pronta. Falta apenas que os decisores o estejam também.